Uma voz que transgride seus limites

Em meio a versificações de diferentes ordens, uma imponente voz feminina atravessa os limites paginados de Garrafas ao mar, livro de poemas da mineira Adriane Garcia. Um eu poético que não se priva da exposição, de denunciar suas fraturas, suas angústias, a passagem do tempo em seu corpo. Algo poderoso e desconcertante. Não tenho saudade das que fui/As minhas mortas estão mortas/E enterradas//Levei flores de muito agradecimento/Mas deixei claro/Que não volto/Ao cemitério, afirma em “Aos 40”.

Fiel ao próprio desejo, a narradora imprime autenticidade em sua expressão libertária, optando por uma cadeia de versos que se manifesta em emoções das mais diversas voltagens, um achado de si cujo foco é o desnudamento. A maturidade é a guia da calçada/Onde sentamos/E verificamos a própria pobreza//Sem alarde/De tentar a bolsa/Que por fim resigna-se:// Há moedas emocionais/Que simplesmente/Não temos, de “Do que não posso possuir”.

Dizer, contudo, que essa leva se constitui de poemas melancólicos é falho; certamente se enquadra melhor no que se entende como lucidez. A autora transfere sua maturidade criativa para a investigação da própria existência e de sua posição diante da escrita. A chama do encantamento que sempre se apaga no sopro frio da realidade, para logo reacender de uma faísca de inspiração; ainda que involuntária, desgarrada. O berro que eu dei/Eras tu/Poesia, confessa em “Nua”.

Esse discurso poético sensível, de versos livres que toma direções imprevistas, mobilizados pela variação de estados de espírito, atinge um grau de complexidade quando explora o elenco de mulheres que há dentro de uma, a interpretação de uma resistência e luta feminina que prevalecem sobre qualquer obstáculo. De Joana d’Arc a Marielle Franco, para qual o poema “A despeito de” é dedicado. Decepem-nos duas, nasceremos quatro/Temos o treino, a expertise, a inteligência/Dos secularmente derrotados.

Adriane ergue bandeiras, aponta, rebela-se, encontra um tom panfletário que se infiltra pela poesia tornando-se um prisma da sociedade. Entre o íntimo e o mundano. A mulher à beira do seu caos pessoal, mas com a boca cheia para exprimir sinais de alerta, emergências transmitidas do reino do mundo. Há muitos meninos assim/Com fome, surrados, sem alma/Que sofrem paradas cardíacas/Sem antes possuir coração, dispara o poema-denúncia “Habib’s”, lembrando do menino de rua morto pelo segurança.

A infância partida ecoa por outras estrofes, em Gaza, nas trincheiras das guerras civis nas favelas. A matéria heterogênea que substancia o fazer poético produz um intercalamento de imagens extraídas de um fundo subjetivo, mas também do que explode em figurações cotidianas, “as raivas do mundo”.

Adriane é atenta: é mulher, é cidadã, é poeta. Seus versos são múltiplos, carregados de ressonâncias, delineados por uma certa beleza que não se preocupa em ter eminência, pois a escrita está a cargo das inquietações oriundas do território interno e dessa margem de abismo sobre qual todos caminhamos.

A poesia é a chave para acessar os fatos de maneira diferente; ou com mais penetração. Dizem que o tempo não existe/E no fundo eu sei/Que só existe/O tempo, conclui o eu poético. Pela riqueza e pela força, a poesia de Adriane Garcia é resistência; uma voz que transgride seus limites, sendo alvo enquanto escudo.

 

 

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Livro: Garrafas ao mar

Editora: Penalux

Avaliação: Bom

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