É curioso notar que os aspectos que renderam ao livro de contos Enfim, imperatriz, de Maria Fernanda Elias Maglio, o recente Prêmio Jabuti são os mesmos que fazem da sua leitura uma incursão gradualmente densa, fatigosa, afetada.
Isso não é um demérito, que fique claro. Na história da literatura universal, há livros que são obras-primas, embora se coloquem como verdadeiros desafios perante do leitor, que carece de fôlego e paciência para atravessá-los. Não é para qualquer um.
No caso da antologia da autora paulista, essa questão se refere a um intenso tratamento metafórico dado à escrita, que superdosa os textos com uma emocionalidade significada num combinado de pulsões sensoriais, elementos líricos e aparência de história mental a um passo de desgovernar para o devaneio.
A princípio, é um efeito narrativo que impressiona (e traz a sensação imediata de uma literatura potente e trabalhada com minúcia). Cinco contos depois, começa a cobrar fôlego e paciência, dando conta de um maneirismo que, sem dúvida, não é para todos.
O ponto positivo é que, sob esse estilo de qualidade hiperestésica, há um conteúdo que abarca temas delicados ao mesmo tempo que contundentes, a exemplo do que ocorre no excelente “Botões coloridos e soldadinhos de chumbo”, que se coloca na consciência de um menino de oito anos rejeitado pelo pai, que considera o filho afeminado.
A narração, em primeira pessoa, encontra uma flexão pueril muito genuína, para tratar dessa incapacidade de compreensão da frieza e da recusa do afeto paterno.
“Viva em Maputo” e “Tempo de coração arrebentado” estão numa chave catártica, acionada pela pungência confessional de duas mulheres vítimas de abuso.
Enquanto o primeiro se constrói na manifestação da violência física (Um pau grande havia me arrebentado o ventre, esporreando sementes destinadas à morte no colo do meu útero), o segundo se desenrola num tom mais epifânico, modulado às rédeas de um fluxo mental abalado por uma perda insuportável.
A condição feminina é assuntada em outros contos, desvendando uma série de dores e conflitos que se estabelecem num senso apurado de humanidade, através da qual se busca um paralelo com a sociedade contemporânea. O poder de reproduzir essas vozes fazem das protagonistas de Maria Fernanda fieis retratos de uma realidade nua e crua.
Por outro lado, alguns textos apostam no esgarçamento do real, armando um cenário de delírio onde correm pensamentos acelerados e convolutos, que funcionam na composição de imagens, de gatilhos poéticos, porém que oferecem muito mais um entendimento visual que literário.
São tipos de puzzles que, embora permitam vislumbres de seus propósitos e simbolismos, são menos resolvidos quando comparados aos outros contos, sobretudo por deixarem mais evidente a escolha por sentidos figurados, apreensões de um mundo onde reinam o fabuloso, o fantástico, o impalpável.
Nesses momentos, Enfim, imperatriz perde impacto por tentar reproduzir sensações que são autoexplicativas. A vida era só um arremedo de alguma coisa que não se via, descreve a narradora de “Terra de avesso” seu sentimento de exílio.
As ocorrências muito regulares de frases dessa natureza vão pesando o trânsito narrativo, que só não congestiona devido à capacidade ímpar da autora de aplicar tensão na fala de seus narradores, de modo a soarem legítimos e múltiplos; uma polifonia que ressoa, em grande parte, de mulheres vivendo ou recordando experiências de abismo.
Maria Fernanda Elias Maglio consegue ser muitas, em seus contos. E isso não é pouco. E isso não é fácil.
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Livro: Enfim, imperatriz
Editora: Patuá
Avaliação: Bom