À primeira vista, Identidades, novo projeto literário de Felipe Franco Munhoz, prega um radicalismo estético.
Uma página inteira é preenchida com uma chuva de caracteres; em outras, os espaços vazios se estreitam em carreiras de palavras ou partituras de piano; há ainda versos escritos ao contrário, blocos inteiros esteados em notas de rodapé; e até mesmo frases em russo.
Uma experiência de leitura visualmente (e aparentemente) desafiadora e inclassificável.
Ocorre que, entre as partes dessa desconstrução formal, corre um fio condutor bem sólido de uma trama que se constrói a partir da correlação entre duas expressões artísticas: a dramaturgia e a poesia eminentemente narrativa.
Basicamente o que se tem é uma peça constituída de pequenos atos (por vezes, vinhetas), que estabelece um cruzamento sensorial com poemas de características diversas, de modo a potencializar a natureza do seu argumento e propiciar a seus personagens o trânsito por ambientes extraterritoriais ao centro dramático.
Um texto, diria, sinestésico, calcado na ressonância e no esvaziamento de camadas de som e de luz; que brinca com a intertextualidade e o limite da (auto)referência, a ponto de ser (sagazmente) uma narrativa original ao mesmo tempo que derivada.
A sua identidade está no que tem de próprio e no que tem de emprestado. Portanto, uma obra movediça, lacunar, camaleônica.
É instigante e interessantíssima a maneira com que o autor trabalha uma passagem ou uma ideia alheia, para em seguida indicar seu lugar de extração, dando a sensação ao leitor de estar diante da carpintaria em pleno funcionamento; uma leitura que se desenvolve simultânea ao processo de montagem.
O leitor na posição de espectador que, de maneira involuntária, interfere na condução textual à medida que engendra mentalmente o mise-en-scène, guiado por rubricas teatrais e pelo motor temático dos versos que vão trilhando o circuito da história pretendida.
Uma livre releitura do clássico Fausto, do alemão Goethe; de forma simplificada, a tragédia do indivíduo que faz um pacto com o diabo.
Nessa versão, o protagonista insinua-se o alter-ego de Munhoz; Margarida, a amante, é nomeada Camila; e Mefistófeles se traveste em mulher, a Suposta Mefistófeles.
Com influência declarada do dramaturgo inglês Tom Stoppard, cuja produção inclui releituras de clássicos universais (entre os quais, Hamlet), o texto frequenta do cânone à vanguarda, incorporando elementos que vão da Sonata para Piano N.º 17, de Beethoven, aos riffs frenéticos das guitarras da Gang of Four.
Da serenidade à explosão, afinal, Identidades se configura um livro raro, que nunca é o mesmo a cada vez que se abre.
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Livro: Identidades
Editora: Nós
Avaliação: Bom