A despeito do cuidado em atribuir uma voz marcante à sua protagonista, a força motriz de O passado é lugar estrangeiro é inegavelmente a manipulação de um segredo.
Há, no cinema, um termo chamado MacGuffin, que designa um dispositivo de enredo (um elemento físico ou abstrato) que o personagem principal irá perseguir durante todo a trama, ainda que essa busca incessante tenha pouca ou nenhuma importância para a resolução da história.
Em seu romance de estreia, a paraense Suelen Carvalho posiciona o leitor como que diante de um MacGuffin, em meio a um desmoronamento psicológico. Descobrir esse elemento secreto não funciona como motor para a trama, porém a presença do mistério é o que instiga a leitura até as últimas páginas.
Um ardil? Sim. Contudo, como fazer boa literatura sem criar grandes ciladas?
A história é de Diana, uma jovem professora que sai destruída de um casamento. Depois de conviver com o advogado Marcos durante anos, e o considerar o homem perfeito (ainda que não fosse um entusiasta do sexo), ela descobre algo monstruoso no computador do marido, que trará consequências trágicas.
Como nunca percebi nada?, questiona-se. Como vocês nunca perceberam nada?, questiona os sogros, quando confrontada por eles.
O enredo ganha extensão nos efeitos do trauma, por meio da fala de uma mulher que naufraga numa combinação de luto e crise existencial. Diana se isola, para de se alimentar e desenvolve uma estranha condição de não suportar cores.
Seus únicos esteios passam a ser a mãe e a amiga Marília. Elas agem para que a professora resista ao presente, enquanto internamente escava com fúria o passado recente, a fim de buscar qualquer vestígio que lhe esclareça o que aconteceu, e o passado de sua infância, igualmente deformado por um duro golpe.
Suelen imprime potência em sua narradora, ao fazê-la transcender a busca por um sentido no ato do marido e mapear o submundo da própria inocência. Os regressos às cenas do relacionamento com Marcos é a forma de se reencontrar com a pessoa que era naquele espaço de tempo e, para o futuro, tomar uma decisão radical para neutralizá-la.
Inexplicitamente, a autora ainda consegue implementar uma discussão sobre a violência contra a mulher. A protagonista teve de crescer com o fantasma do desaparecimento do pai; a mentira desnorteante do marido eleva esse choque emocional a um obscurantismo capaz de anular a própria identidade.
As agressões físicas e verbais não são as únicas agressões. O silêncio é também uma forma de violência.
O passado é lugar estrangeiro tem saídas narrativas estimuladas por descobertas, embora seu fio condutor esteja no que há de mais escondido.
***
Livro: O passado é lugar estrangeiro
Editora: Patuá
Avaliação: Bom
Muito consistente a análise!! a autora parece ser uma boa nova da literatura nacional!!
CurtirCurtir