Desfiando o travesseiro de Roth

A certa altura de O teatro de Sabbath, de Philip Roth, o personagem em questão, um manipulador de fantoches aposentado, rememora um episódio em que foi preso por expor os seios de uma moça, numa de suas apresentações públicas. Levado ao tribunal, ele é confrontado por um promotor que o questiona se tem ciência da gravidade do seu ato. Sabbath, então, tergiversa: “Veja bem, isso é uma forma de arte.”

“Arte?”, o promotor reage com uma careta de espanto. “O que o senhor fez foi desnudar um seio de mulher, e isso por acaso é arte? Quantas outras vezes o senhor já desabotoou roupas de mulher?”. O acusado responde, agora com autoridade: “Na realidade, é muito raro chegar a esse ponto. Infelizmente. Mas essa é a arte. A arte consiste em levar as moças a tomar parte da encenação.”

Mentiras, de Felipe Franco Munhoz, também relativiza a arte na interpretação do fazer literário. Criando um duplo de si, o autor paulista toma a mão do próprio Philip Roth para encenarem grande parte dos blocos de diálogos que constituem seu romance de estreia. Trancados num café imaginário, eles irão partilhar a experiência ativa da escrita e debater as desventuras das relações amorosas, num exercício de intertextualidade e de metaficção.

A primeira “moça que toma parte da cena” é Thaís. Advogada, de 30 anos, ela é peça de um jogo erótico e também um de observância. Ao mesmo tempo que seu relacionamento com Felipe serve para dimensionar ambos os personagens e criar um micronúcleo narrativo, sua presença desencadeia uma experiência de alteridade, de ser o outro pelo qual Felipe e Roth se conscientizam de que ocupam o território de um livro.

Instaura-se, desse modo, uma dinâmica em que, às tardes, os autores confabulam os entreatos, e as noites são reservadas às interações entre os amantes. A potência desse movimento é a literatura. O ir e vir de dois planos que compassa a urdidura do, como classificou o escritor português António Lobo Antunes, “travesseiro que o escritor vai fazendo, durante a vida, para se deitar”.

Munhoz o tece a quatro mãos. Seu Roth tem a função de escritor fantasma, na ambivalência do termo, mais ainda de leitmotiv da trama. Felipe, o duplo, declara que quer habitá-lo, torná-lo, com o passar do tempo, a figura mais importante de sua vida. Mas, para isso, ignora praticamente fatos pessoais, e se atém aos seus livros, aos seus personagens. Desconhecer o que e quem são não prejudica em nada a leitura, mas pode inviabilizar algumas boas sacadas. De fato, o autor paulista se afina à frequência da ficção de Roth; as compulsões, o humor revoltoso, o judaísmo.

A reboque desse último tema, vem a proscênio Marina “(mar de minha sina, morfina dessa carne)”, cuja presença agrava a peleja sentimental e causa a ruptura da neutralidade do real sobre a invenção. Munhoz propõe que os personagens podem se rebelar contra o próprio livro, que o romance pode seguir sem protagonismo, pois o enredo não é o produto final, e sim a incidência das referências que o compõe. Seja de maneira explícita, na trilha dourada dos inúmeros autores citados, ou de modo implícito, no bater sedoso das asas das borboletas de Nabokov.

No entanto, não há dúvida de que o grande mérito está na estrutura. Se compor diálogos consonantes à oralidade é um desafio para qualquer escritor, que o diga erguer todo um livro sobre estes. O próprio Roth só se atreveu a esse procedimento no meio de sua carreira, com Deception (de cuja primeira tradução o romance empresta o título). Munhoz corre o risco logo em sua estreia, e o faz com fluidez, como se fosse fácil. Certamente essa é a maior de suas mentiras e, veja bem, uma forma inquestionável de arte.

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Livro: Mentiras

Editora: Nós

Avaliação: Muito bom

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