Há a infância da vida e a infância da memória. A primeira cabe aos vivos, a segunda cabe aos mortos. Porém não a falência do corpo, a decomposição da matéria, e sim o cumprimento de um estágio, o tempo incinerado de uma existência, onde as lembranças perdem tiras da sua pele original que são preenchidas pela invenção.
Lugar comum, coletânea de contos com a qual a escritora Nara Vidal estreia na literatura adulta, está repleta dessas recordações entretecidas pelo novelo do encantamento que, paradoxalmente ao se metabolizarem em ficção, passam a ser os registros mais fieis da interpretação de mundo de uma criança, a menina que ainda corre descalça pelos quintais com cheiro de bolo e de chuva no interior de Minas Gerais.
Reconstruir esse mundo, portanto, é a forma possível de enxergar o presente, mesmo que o olhar dependa do filtro da escrita, pela qual a vida vai encorporando detritos de fingimento que desgastam o verniz da realidade. Olhar além de si, além do território, além da concretude. Interiorizar-se para ocupar espaço. O escritor não deve ser produto do seu meio, mas criar um meio que seja produto da sua imaginação.
Assim, a vida se converte num mosaico de reminiscências, de pequenos registros da infância que naturalmente mistura realidade e fantasia.
Um circuito afetivo no qual a menina, na casa da avó, vê os primos chegarem “feito torneira aberta” e, ao lado da irmã mais velha, mostra que estão ali “pra brincadeira. Da séria”, como relatado em “O táxi”. A maioria das narrativas é mobilizada por esse circuito de passagens, de toques, de cheiros e de sensações. Reconhecida autora de livros infantis, Nara consegue trabalhar bem, no plano narrativo, a transição do olhar maduro para o pueril.
Com isso, a coletânea se desenvolve sobre dois eixos de significação. Os contos edulcorados por laços familiares, pelo passeio por reminiscências povoadas por brincadeiras e quimeras, e as narrativas embebidas por tonalizações mais retintas, ora melancólicas ora ásperas, o travo do desenfeitiçamento natural ao caminho rumo à finitude, pontuado por perdas, autoenganos e certezas incontornáveis.
Há cerca de quinze anos residindo fora do Brasil, a autora traz ainda para a ficção as sequelas do desterro. As palavras, que se estrangeiram cotidianamente aos seus ouvidos, resistem em português no papel, onde também ganham relevo dissabores e constatações meio zombeteiras, meio amargas, sobre as vivências de brasileiros em territórios estrangeiros. Como no sardônico “Estreito de Dover”, no qual é relatada a viagem de uma família mineira pela Europa, até se deparar com a “inteligência” de um banheiro público alemão.
A qualidade literária, contudo, é singular em ambos os casos. Da leveza ao desencanto, dos cantos de saudade à crítica social, Nara caracteriza sua prosa pelo requinte da linguagem e pelo domínio técnico. Como conclui o escritor Alonso Alvarez, na apresentação, é um livro que tem “o gosto de vida”. Da vida da menina que escreve pelas mãos da escritora.
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Livro: Lugar comum
Editora: Pasavento
Avaliação: Bom