O maior êxito de um microconto é provocar no leitor a sensação de que acabou de experimentar algo que precisa de si para se completar, ainda que isso em nada tenha comprometido o entendimento da estrutura ao redor da ideia.
A suspeita de que aquilo que foi contado em poucas linhas contém a possibilidade latente de algo maior. Talvez um conto comprido, uma novela, um romance. Não depende do autor. Todo microconto é parte tecido, parte elipse; parte texto, parte subtexto.
O mineiro Whisner Fraga demonstra conhecer bem essa cartilha. Autor multívago entre gêneros, ele acaba de lançar Lúcifer e outros subprodutos do medo. A coletânea de contos curtos e microcontos é marcada por uma habilidosa supressão de caminhos, pequenos acontecimentos constituídos por cenas infinitesimais de um circuito mobilizado por lacunas.
Numa analogia futebolística, não é o segundo gol de Maradona contra a Inglaterra, na Copa de 86, mas o elástico de Rivelino contra o Vasco, no Carioca de 75. Não interessa a glória que está na sequência. O que importa é o drible imprevisto, o movimento que o compõe.
Dois exemplos ilustrativos são “História da literatura”, que abre o livro, e “O fim”. No primeiro, uma atriz de teatro relata o porquê de não ter sido amante de Samuel Beckett, num desfecho que brinca com o banal e o excêntrico. O segundo é uma desordem de gestos e falas sufocadas, na qual uma centenária, em plena degradação física, é assista com comiseração por uma outra pessoa.
Quem seria? Uma cuidadora, um filho, um futuro algoz? Qual passado teria aquela mulher para, aos 103 anos, ainda se ater às aparências? E quanto ao happening entre a atriz e Beckett. Quem seria aquela mulher? Quais virtudes teria para despertar calores no macilento irlandês?
Fraga não revela nenhuma dessas respostas; não há motivo ou obrigação. Cabe ao escritor a edificação da cena, a captura do instante. Ponto. Toda tensão que se irradia de seu exíguo limite interno é de responsabilidade do leitor; a leitura é o exercício de decifrar a ausência.
Desse modo, um jogo de claro-escuro se estabelece, em que o homem moderno é o protagonista. Seus medos, seus fracassos, seus autoenganos; a forma pela qual este é assombrado pelos deveres da paternidade, da titularidade familiar, das relações afetivas e da violência urbana.
O autor vai demarcando esse território com pontos de equivalência, seja através da temática seja por meio da reincidência de palavras, e mapeando a coletânea através de um olhar multifário sobre a literatura que decifra a vida e a vida que se decifra por meio da literatura.
Da emoção mais comezinha ao gozo supremo, do desencontro ao desaparecimento eterno, as narrativas se sucedem em tons distintos, até alcançar o ápice com o mínimo e preciso “Notícia”: “O médico evitou rodeios: um entre quinze mil bebês nasce assim”.
Um lampejo que parece decorrer da mesma paragem em que Hemingway encontrou seus sapatos de bebê.
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Livro: Lúcifer e outros subprodutos do medo
Editora: Penalux
Avaliação: Bom
Whisner Fraga e a sua incrível e conhecida capacidade de provocar os leitores ( resenha valiosa no sentido de nos alertar para ler o livro) – eu que sou vascaíno e, também, fã do Rivelino, gostei de ver esse lance do elástico lembrado nesta resenha. E sem nada a ver com o texto, só para constar, neste jogo o Vasco ganhou de 2 a 1 do Fluminense- .
Abraços
Enio Ferreira – ALAMI
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Como um bom tricolor, defendo que um jogo com um lance desse não deve se ater ao resultado. 🙂 Grato pela leitura, meu caro Enio! Forte abraço!
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