É a cidade que nos sonha

O breve poema que dá nome a Máquina de fazer mar, de Augusto Guimaraens Cavalcanti, constitui-se a partir de deslocamentos. Sugar o açúcar e lhe devolver o sugar/Sugar o açúcar e lhe devolver o amargo/De sugar a sugar/Do açúcar ao sal do mar. Decerto, se há um dínamo que mobiliza essa terceira incursão do escritor carioca em território poético, esse é a transfusão da matéria sólida em organismo abstrato.

A cenário urbano é o que se faz plano de conversão. Das formas geométricas, das rachaduras e dos vãos entre os prédios, escorre o trânsito das palavras; aquelas que se configuram mirante para que os poetas possam estudar o espaço. Esse estado de interpretação é instado ao ofício do arquiteto. Conforme no poema que leva este nome, a construção se faz com aço e pedras, mas também no imaginário do“azul rasgado/pela vértebra de uma tarde embaralhada”. É preciso inventar naufrágios sem navios,/deixar alargar e reaprender a flutuar,/estar perto da elegância dos acidentes,/estar trancado do lado de fora/é preciso.

Cavalcanti observa o vasto, o universo insondável, a exemplo de um cosmonauta com os pés no chão. Sua visão tem o limite do que classifica como “chão verbal”. Abarca todo um plano dimensional para extrair um sentido diminuto, dos sentimentos e das palavras voláteis. A cidade pertencia àqueles que fotografavam tudo,/dos que arranham os céus com unhas e depois/saíam distraídos para caminhar… com suas desmedidas/máquinas de fazer mar.

A arte, de muitos modos, é outra fonte de empréstimo. O cinema de Georges Méliès rompe o tempo-espaço para se refletir numa tela de Mondrian, assim como o sambista Cartola encontra-se com o norte-americano Roy Orbison. Os poemas ganham ares de tributo, sem serem reverenciais. Na verdade, os artistas convocados trazem, de singularidades de suas obras e vidas, elementos compulsórios para a própria poética do autor.

Isso se mostra mais evidente quando as referências são literárias. Herberto Helder, Roberto Piva e Federico Garcia Lorca (alguns presentes em citações) influenciam no tamanho dos versos, na modulação e num modo furtivo de intertextualidade. Vide “Deus é pó”, que se escreve sob os cotovelos de Lorca. A cidade era agora um grande museu vivo sem muros:/dois prédios faziam amor com o ar, dissolvidos,/na escuridão do dia; dois gigantes arranham o céu/como nunca dantes imaginado.

O mesmo ocorre no aventuroso “A última ciência da noite”, que, como descreve o autor, é uma viagem mental em torno de “O poema contínuo”, de Helder. Última da antologia, a extensa composição reúne muitas das imagens que se apresentaram anteriormente, estabelecendo uma noção de unidade, uma sintaxe particular.

Concordando com o mestre Paulo Henriques Britto, que assina a orelha, Máquina de fazer mar “solidifica o nome de Cavalcanti no cenário poético brasileiro”. Uma reunião de versos que investiga a alma humana na esfera de pedra, provando que “nada é concreto até que desapareça”.

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Livro: Máquina de fazer mar

Editora: 7 Letras

Avaliação: Muito Bom

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