A escritora argentina Ariana Harwicz ganhou projeção mundial com seu livro de estreia, Morra, amor, publicado originalmente em 2012. Primeira parte da intitulada Trilogia da Paixão, a novela se distingue por oferecer uma experiência radical de leitura, através do monólogo interior de uma mulher que, isolada numa região rural, na companhia apenas do marido e do bebê, lida com os demônios da depressão pós-parto. Para se ter a dimensão do reconhecimento, a edição inglesa foi indicada ao Man Booker Prize, prestigiado prêmio do Reino Unido que já elegeu nomes como Ian McEwan e Margaret Atwood. No Brasil, o livro foi lançado em 2019.
A débil mental, que chega agora às livrarias brasileiras, é chamada, pela autora, de segunda parte da trilogia, mas, narrativamente, pode ser considerada uma contraparte. Embora tenham histórias fechadas, que não se conectam de forma direta, ambas trazem argumentos siameses e se desenrolam numa ambientação de similar natureza (geográfica e psicologicamente), gerando uma espécie de contextura identitária. A variável está na conduta. Se Morra, amor já apresentava uma prosa sinestésica, vigorosa, crua, em A débil mental, Harwicz avança para uma escrita mais reacionária.
Não é fácil descrever o estilo da autora argentina sem recorrer a uma analogia. É como o tatear por um terreno envolto em névoa e cheio de perigos, onde o que está em primeiro plano são vultos. Os enredos são repletos de possibilidades interpretativas. Como se a história de fato estivesse bispada sob o fluxo frenético de consciência, sob esse desarticulado caudal de palavras, imagens brutas, sensações primitivas e uma essência do que poderia ser uma crítica social deambulando por todo o texto.
O que ressoa na camada principal é a voz descarrilhada de uma filha que vive uma relação de afeto e repulsa, de cumplicidade e desprezo, com a mãe, atadas por um estigma que compreende o corpo simbólico e o corpo físico, lançando-as numa espiral de loucura, violência e sexo. Marginalizadas num vilarejo de aspecto selvagem, a saída possível para se livrarem da maldição da miséria é o amante da filha, um personagem essencialmente fálico a partir do qual se constrói um mosaico gráfico de parafilias.
Tal visão mosaicista é um fator fundamental para toda a trama, pois, a despeito de uma estrutura armada em breves capítulos e de uma tensão contínua de destruição mútua entre as personagens, Harwicz adota um procedimento dúbio de escrita que sugere uma ideia de justaposição. Em algumas passagens, vozes de mãe e filha se fundem, completam-se, pondo em dúvida quem está no controle da narração, de quem é o comportamento relatado; se não é, de fato, uma pessoa absorvida na outra.
Assim, passado e presente coabitam um circuito de feroz desarrumação, baralhando memórias de forma imprecisa e dissociativa, sobretudo no que diz respeito aos homens que passaram pela vida das duas. Nunca é claro, por exemplo, com quem a criatura pai se relaciona sexualmente, trazendo à tona episódios borrados que (figurativamente ou não) envolvem abuso infantil, prostituição e incesto. Este último, aliás, também entre mãe e filha.
A vida é uma cachorra no cio, diz a personagem. E, mais adiante, complementa: Às vezes, um corpo não é mais que um coito.
O inusitado (ou talvez bizarro) é que, dessa entropia mental de caráter perturbador, a autora consegue extrair uma alta carga poética. Combinando o soturno do bosque, animais selvagens e um espectro pagão, de ritos, cantilenas e símbolos, o texto adquire uma estética que, por vezes, lembra os contos da carochinha. Mas não aqueles limpos, edulcorados, e sim as narrativas arcaicas de bruxas canibais, mulheres que se conluiam na floresta para sequestrar crianças e devorar homens.
Sim, não seria um lance de marketing classificar a novela de Harwicz de literatura wicca. Um caldeirão ficcional que segue o legado de autoras como Silvina Ocampo, Clarice Lispector e Hilda Hilst, que deram vida a textos com máxima voltagem de erotismo, manifestações de neurose e um brutalismo que se consorcia à condição de fêmea, embora guardem uma beleza imprescindível, uma contemplação lírica. Atualmente, no Brasil, a paulista Márcia Barbieri é a que melhor repercute essa maneira de escrita.
Para 2021, está programado o lançamento da última parte da trilogia, a também novela Precoz (numa tradução livre: Precoce) , que aborda o relacionamento obsessivo e obsceno entre mãe e filho. Como, presumo, ficou claro a essa altura da crítica, a literatura de Harwicz não é para todo tipo de leitor, mas, ao adentrar o universo caótico engendrado pela autora, é impossível sair ileso. Tomando como representação uma fala da protagonista – (…) nos beijamos. E beijar-nos foi como avançar com a faca em riste -, são histórias que deixam entrever uma experiência de certo encanto, mas, no fim, sempre aguarda algo maldito, alguém febril a empunhá-lo no peito.
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Livro: A débil mental
Editora: Instante
Avaliação: Muito bom
Fiquei curiosíssima. Botei na lista
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