Encravada no sertão nordestino, a cidade de Mocozal vai sendo contaminada pelos dogmas de um fanático religioso.
Um reverendo norte-americano de nome Logan, que se aproveita da crendice “de um povo cheio de temores” para ingressá-lo numa seita banida há décadas no Sul dos Estados Unidos, por conta das mortes associadas aos seus rituais primitivos.
A nativa Cacilda é seu braço forte. Severa, doutrinadora e repressora, ela se autoproclama diaconisa, mulher responsável pelos serviços no templo e pelo cuidado dos pobres.
No entanto seu comportamento não denota qualquer sinal de altruísmo e, menos ainda, de compaixão.
Principalmente em relação à sobrinha Benigna, que ficou sob sua responsabilidade depois que perdeu os pais. A adolescente se recusa a frequentar os cultos, amanhando uma personalidade moldada por um misto de atrevimento e ingenuidade, que se apraz à organização dos festejos de São João.
Seu maior desejo é completar logo quinze anos e ser coroada a noiva da quadrilha. Cacilda sabe e, como forma de punição, impede a sobrinha de frequentar a dança.
De hoje em diante, não tem mais rádio e não tem mais música nessa casa. Você pode não ter mais pai nem mãe, mas tem eu pra dar as ordens. E você não vai brincar de quadrilha porque eu não quero! Aliás, duvido muito que vá ter quadrilha esse ano, aposta.
Realmente não teve. “Nem no ano seguinte. Nem no próximo…”. E a saga da menina em busca do direito de dançar seu ritmo preferido funciona como fio condutor em Judas no paiol, romance de estreia do cearense Cupertino Freitas.
Afetos e fósseis
Depois da briga, Benigna se refugia na casa da avó, uma construção decadente nos limites do município. Dona Rosa é o inverso de Cacilda, uma velha viúva, maltratada pela vida, contudo carinhosa e confidente da neta. Benigna lhe segreda gostar de Tadeu, um bem-sucedido criador de cabras. O caso é que seu interesse amoroso, a seu modo de ver, prefere a amiga Lucivanda, em razão de sua bunda e de seus seios fartos.
Diga a verdade, vó: a senhora me acha muito mirradinha?. Mirradinha? Minha filha é muito é linda!, responde.
De fato Tadeu se interessa mesmo por Lucivanda, porém está sendo convencido (ou melhor, convertido) por Logan a ficar noivo de Benigna.
A intenção do reverendo é se aproveitar dos negócios do rapaz. Mas ele não é o único. Dois paleontólogos também norte-americanos, ligados ao contrabando de fósseis, ficam na cola de Tadeu, depois que ele faz (sem conhecimento exato) uma descoberta muito rara.
São movimentos de linhas narrativas que, a certa altura, confluem-se, conectando direta ou indiretamente os personagens da história.
Boas construções e falta de tensão
Há elementos de enredo muito interessantes aqui.
Freitas inventa uma Mocozal bem delineada em seus aspectos geográficos e culturais, que passaria facilmente como uma cidade de verdade.
A iconografia do sertão nordestino está representada tanto nas imagens que compõem o cenário quanto nos tipos característicos, que não se rendem à tentação da caricatura ou do arquétipo, ainda que se comuniquem por meio da linguagem regional, carregada de expressões típicas e de idiomatismos.
A densidade da atmosfera ambígua, que ora se expande num realismo árido, ora se concentra em ocasiões infiltradas por um estado de não solidez, permite a entrada de uma dose de eutrapelia, um estranhamento quase lúdico, que dá ao lugar um caráter existencial entre a Comala, de Pedro Páramo, e a Asa Branca, de Roque Santeiro.
Isso também tem a influência dos personagens principais, que são bem construídos em suas motivações e escalas psicológicas.
O problema está na falta de tensão entre os fios que articulam o enredo, deixando frouxa a jornada da protagonista e aproveitando menos do que poderia um sub-segmento ligado a um segredo obscuro do reverendo Logan e a história do fóssil descoberto por Tadeu, de um exotismo intrigante.
No prefácio, o autor informa que o romance nasceu da conversão de um roteiro cinematográfico em prosa. Salta aos olhos esse processo de adaptação. Judas no paiol é um livro com um potente apelo visual e estruturação de personagens, porém que carece de um pouco mais de literatura em sua musculosidade.
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Livro: Judas no paiol
Editora: Moinhos
Avaliação: Bom