Há de se atentar ao título do novo livro de Marcelo Adifa. Em como a ausência da contração “no” está diretamente relacionada ao conceito da antologia poética.
Saltar “no” vazio indica um movimento, uma ação voluntária, ao passo que Saltar vazio remete a um estado de impossibilidade, um espaço de coisa nula.
E esse mecanismo de não existência, de despersonalização, é o que rege os poemas desse belo trabalho do autor paulista. (…) só há poesia de verdade quando/não existir nada que se possa fazer/e feito poema de sua própria angústia/restar ao homem ser quase ausência/tamanha que lhe sobrem palavras, do premente “Aviso”.
Em maior e em menor grau, temos um narrador às voltas com dramas humanos que correspondem ao corpo-moradia e ao plano das emoções. Ainda que se estabeleça sobre elementos de domínio do cotiano, a prática da escrita se processa nos arredores da subjetividade, do homem que precisa iluminar a memória para se encontrar no mundo.
a memória é o precipício da alma/é de onde surgem os argumentos/para o saltar vazio rumo ao nada//e quando o que encontra-se é fragmento/temos a certeza do acaso, do inconstante/do acidente que é peso ou palavra//depende de como cada um escreve a sua vida, do poema-título “Saltar vazio”.
Adifa opera os códigos fonéticos e as associações vocabulares por meio de uma carpintaria que não busca os versos metrificados e rimados, mas os ritmos particulares dos versos livres, de modo a ressoar da sua poesia um caráter acústico – em alguns casos, a frequência própria da melodia.
São canções cantadas para dentro de si, quando, normalmente sóbria e inequívoca, a voz poética parece refletir uma composição pessoal extraída de um álbum de família. nas lembranças residem o cheiro e o sabor/das sombras, dos nomes que não dizemos/com medo de evocar o que se foi, de “Dos nomes que não dizemos”.
Dessa mesma fonte afetiva, vem à tona o relacionamento declamatório com uma musa impossível – passaria o dia nos teus olhos/na rasa distância entre a boca/e o tempo, o querer na entrada/dos teus braços e o acarinhar/em pele pelo teu corpo, sutil, de “O dia nos teus olhos” -, que se revelam os textos mais regulares.
A sorte é que são ocasionais, e a questão central volta a se alojar nessa história pessoal, que implica reflexões sobre a vida, a morte, o pertencimento ao mundo e ao universo da escrita, criando saídas para o autor lançar visadas sobre a sociedade e explorar a interpretação crítica.
a cidade sangra/e de suas carnes/das entranhas expostas/dos homens dilacerados/borbulha em cheiro/aquela podre sensação//nem o suicídio é original/o morto repete o outro/e quer daquele a fama, do cáustico “A cidade sangra”.
Com esse terceiro livro publicado, Marcelo Adifa solidifica seu nome no gênero, demonstrando coesão e requinte, mesmo ao transitar por vários temas e se inspirar na forma clássica sem ser reverencial. Uma obra de assinatura, que merece atenção da crítica especializada e do leitor.
***
Livro: Saltar vazio
Editora: Penalux
Avaliação: Muito bom
Um comentário sobre “Daquilo que está na memória”