Lucas Pereyra se levanta às seis da manhã e desperta a esposa com um beijo. Você falou dormindo, ela diz. O que eu falei? O mesmo da outra vez: “guerra”. Estranho, ele se esquiva, entrando no banho e depois se vestindo para a viagem de um dia que é o tempo de execução de A uruguaia, de Pedro Mairal.
Pereyra é um escritor argentino. Dirige até o porto e embarca num ferryboat rumo ao Uruguai, a fim de descontar o adiantamento dos contratos de um romance e de um livro de crônicas. O motivo de abrir uma conta no país vizinho é a chance de sacar o dinheiro em dólar e, de volta a Buenos Aires, dobrar a quantia no câmbio negro.
Com dívidas até pescoço, Catalina, a esposa, é quem sustenta sozinha a casa e garante as necessidades de Maiko, o filho pequeno. A grana que ia resolver tudo. Até minha depressão, meu isolamento e o grande “não” da dureza, assim ele define. E esse é o primeiro engano de tantos enganos e autoenganos desse romance saboroso.
Pereyra não pretende apenas pegar o dinheiro. Logo depois de zarpar, envia um e-mail para Magalí Guerra – a “guerra” do sonho e a uruguaia do título -, que conheceu, há alguns meses, num festival literário e viveu um caso relâmpago. Desde então, não tira a jovem da cabeça e planeja usar a viagem para também passarem o dia juntos.
O que ele não sabe é que Catalina descobrirá sua conta eletrônica aberta e lerá a mensagem. Ou melhor, sabe. A maior parte da trama é narrada numa espécie de relato dos fatos, na qual a esposa é a interlocutora. O que avança se volta para a construção desse fim, numa retrospectiva com características de confessionário.
Mairal, desse modo, arquiteta o ambiente perfeito para desenvolver um estudo do conflituoso estado psicológico de seu personagem. Um homem recém-entrado nos 40 anos, experimentando a chegada de um filho na rotina do casamento, em crise existencial (como não tê-la sendo um escritor?) e seduzido pela fuga de uma amante.
O romance, porém, não pesa a mão no ocaso. Muito pelo contrário. O texto flui num ritmo macio que possibilita a conclusão da leitura em algumas horas, criando momentos divertidos e, sobretudo, fazendo graça do próprio assunto que elegeu. Há, sim, trechos que pendem para o drama, contudo nunca extrapolam esse circuito de leveza.
Com isso, o autor argentino utiliza da fina ironia para compor, por exemplo, uma crônica cortante sobre a paternidade e como o relacionamento homem-mulher vai sendo obliterado pelo papel de pai e mãe, formando dois indivíduos exaustos e sempre preocupados, que perdem o direito de praticar qualquer atividade que não esteja ligada ao filho.
Tais circunstâncias, que habitam o espaço da história mental, são bem arranjadas para desenhar o comportamento hesitante do narrador, colocando-o no terreno movediço que separa a realidade do desejo. Ao mesmo tempo em que se sente culpado pela traição, alimenta a dúvida de que esteja sendo traído. Está sempre a um passo da frustração.
Quando finalmente toma posse dos dólares e se encontra com Guerra, as coisas se encaminham para um desenrolar previsível.
Todavia a reviravolta não é o alvo de Mairal – até porque a condução não demonstra qualquer cacoete para o mistério.
O autor está mesmo interessado na travessia interna, na jornada pedestre por esse passado tão vivo de presente, que abastece com reflexões perspicazes sobre futebol, cinema, música e literatura, alta voltagem sexual e demais idiossincrasias do macho moderno que se desmonta diante da emancipação e do poder das mulheres.
A uruguaia, afinal, é sobre um homem reticente que inventou um universo para si, porém não sabe como entrar (ou, talvez, como sair).
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Livro: A uruguaia
Editora: Todavia
Avaliação: Bom