Aconteceu na Bahia.
Rhanna Kevila da Silva Almeida, de 15 anos, moradora da Rua Michele Pires, em Barra da Estiva, foi estuprada e ferida com um instrumento perfurante, dentro do próprio quarto. A adolescente chegou a ser levada ao hospital, mas não resistiu. A polícia não tem qualquer suspeito do crime.
Aconteceu na Bahia, e faz um dia.
O assassinato de Rhanna soma-se aos casos de feminicídio que denuncia a argentina Selva Almada, em Garotas mortas.
Não de forma declarada, pois o livro foi publicado originalmente em 2014, mas na tomada de conhecimento de que é mais uma ocorrência nessa pilha de arquivos que segue crescendo de maneira ultrajante e exponencial em toda a América Latina.
O livro é um potente ensaio oriundo de uma investigação jornalística cujo ponto de partida é a caça a um fantasma pessoal.
O homicídio de Andrea Danne, de 19 anos, que foi encontrada na própria cama, apunhalada no coração. O fato aconteceu em 1986, quando a autora tinha 13 anos, e a marcou profundamente. Assim ela relata: Durante mais de vinte anos, Andrea esteve por perto. Voltava de quando em quando com a notícia de outra mulher morta.
Movimenta ainda o eixo narrativo, as histórias trágicas de María Luisa Quevedo, de 15 anos, cujo cadáver foi encontrado num terreno baldio, vítima de estrangulamento, e de Sarita Mundín, de 20 anos, que desapareceu. Também nos anos 80, período de redemocratização argentina, em cidades do interior do país.
É, a partir da natureza desses três crimes, que Almada constrói a sua busca, promovendo entrevistas e recorrendo a materiais da época, ao ocultismo e à própria experiência. Recorda de uma tentativa de violência que sofreu junto a uma amiga, e de outra que uma pessoa da sua família conseguiu escapar.
Mais do que a solução dos casos, porém, o motor de sua procura está em constituir a figura do agressor e em expor a conduta perversamente condescendente da sociedade machista de seu país ante o crime contra a mulher.
Eu não sabia que uma mulher podia ser morta pelo simples fato de ser mulher, mas tinha escutado histórias que, com o tempo, fui ligando umas às outras. Casos que não terminavam com a morte da mulher, mas em que ela era objeto da misoginia, do abuso, do desprezo.
Decerto, esse pode ser assinalado, por alguns, como alvo de crítica: a apuração dos fatos não empreende uma linha condutiva de raciocínio, procedendo de forma fragmentária ao mesmo tempo que outras histórias de morte e violência preenchem o corpo textual.
Todavia é necessário entender que não se trata de um romance de suspense, do mesmo modo que Almada não intende romantizar essas histórias.
É um relato extremamente realista, por vezes brutal e desolador, como deve ser a descrição de um cenário de assassinatos e práticas cruéis que, por deformação moral e intelectual, seguem sem perspectiva de fim e punição de culpados.
A certa altura, enquanto se consulta com uma vidente, a autora é questionada se conhece a história de La Huesera, a Mulher dos Ossos.
Diante da resposta negativa, a senhora explica que é uma velha transita por vales e montanhas à procura de ossos, em especial os de lobo, para revivê-los na forma do animal que, sob a mulher, transforma-se numa mulher “que corre livremente rumo ao horizonte, rindo às gargalhadas”.
E complementa: Talvez seja esta a sua missão: recolher os ossos das garotas, armá-las, dar-lhes voz e depois deixá-las correr livremente para onde tiverem que ir.
Contando as histórias dessas garotas mortas – de centenas de outras que morreram, que morrem e que morrerão -, Almada ressoa as vozes das vítimas dos crimes que todo um continente finge não ouvir, dando relevância a esse livro que combate, de forma contundente, o feminicídio.
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Livro: Garotas mortas
Editora: Todavia
Avaliação: Muito Bom