Como não sangrar,/por todos os orifícios,/como não temer este amor/se o mundo ainda não foi/desnazificado?, questiona o poeta ao seu eu lírico assim como ao mundo que convive com dramorrores iguais aos vistos recentemente na cidade americana de Charlottesville.
As contradições de uma sociedade que, à medida que envelhece, parece involuir intelectualmente é uma das endentações que movem o eixo polivalente de Arquiteturas de vento frio, antologia poética de Walther Moreira Santos, que ganhou II Prêmio Cepe Nacional de Literatura.
Em sua estreia na composição em versos, o autor pernambucano se põe diante de artificialidades e do resgate do comezinho diluído na suntuosidade estéril do imediato.
Nesta era de vulgarização da luz,/do frio e agressivo brilho das telas dos computadores,/das tevês gigantes, dos plasmas que recobrem edifícios,/que transmitem ao vivo a bomba e seus gritos,/quero a pedra, o lago, os círculos concêntricos da água.
Esse estado de natureza sintética, de paraísos chapados em cartões-postais, oculta um longo e decantado rio/de sangue. O texto lírico se faz um prisma da realidade, apontando uma tendência que vai marcar toda a sua trajetória: o entrecruzamento constante da fronteira que distingue o palpável e o abstrato, o visível e o interiorizado.
Através de versos livres, de uma poesia esteticamente prosaica, Moreira Santos opera no universo magnético dos desejos, lançando mão de uma soma de (auto)indagações que impulsionam o narrador onipresente a explorar a si e a matriz da própria arte. O efeito subjetivo e o fazer literário, desse modo, acabam por se mimetizar.
Perdoa-me/estes murmúrios,/mas como apascentar/minha alcateia/de palavras/se não deitá-las/em teu peito/ou pelo menos/no papel?
A busca por um sentido para a própria escrita passa a ser a busca pelo sentido da vida (Por que amamos?, Porque escrevemos?, Por que morremos?), percorrendo, tão sinuoso quanto o áquilo, estágios de consciência onde reinam o onírico, o devaneio, o pensamento filosófico e o etéreo. O mais arrojado é que, se por um lado o autor convoca temas complexos, a linguagem produz conexões luminosas e uma harmonia aprazível ao trabalhar com vocábulos simples e situações corriqueiras.
Se os dias futuros/forem só cinzas e palha e feno/enegrecido;/decerto/quando a Morte nos lamber os calcanhares/como a onda que se acerca da areia aos nossos pés na praia,/talvez,/perfilados/sorriremos/pelo muito que do humano e divino/fulgor/vivemos.
O segmento final é dedicado a escritores que se configuram hastes de influência, de dois modos moldando o poeta e o menino que consegue remontar pedaços de sua infância através da matéria elástica da escrita. Olhando para trás, o autor passa a descamar a existência até o ponto em que o humano se reduz a um signo de imortalidade.
Então eu soube que há apenas um tempo chamado Eterno agora,/onde tudo é frágil e vasto e nos atravessa.
Arquiteturas de vento frio passeia pela formação (des)encantada da vida, avançando sublimemente para a fundura da alma de seu condutor.
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Livro: Arquiteturas de vento frio
Editora: Cepe
Avaliação: Muito Bom