Coube a Vidas secas, do alagoano Graciliano Ramos, ficar para o imaginário coletivo como o grande romance nordestino sobre o drama dos retirantes.
Dez anos antes, porém, o paraibano José Américo de Almeida publicava A bagaceira, marco inicial da segunda fase do movimento modernista brasileiro e, acima de tudo, obra que prenunciava o chamado ciclo do romance dos anos 30 que, além do clássico de Graciliano, seria marcado por títulos como Mar morto, de Jorge Amado; O Quinze, de Rachel de Queiroz; e Menino de engenho, de José Lins do Rego.
Frequente em seus tecidos narrativos, a maneira sensível de extrair da realidade matéria para ficcionar e denunciar os flagelos de uma região em indomável degradação, por conta da seca, do êxodo, dos conflitos e do esboroamento de uma sociedade patriarcal de donos de terra que comandavam os engenhos e a monocultura da cana-de-açúcar.
Desse estado de opressão e injustiça, incorre a trama de A bagaceira, em seus intuitos velados e simbolismo trágico. Vide o título que deriva do substantivo “bagaço”: resíduo de fruta, cana, erva etc., espremido ou moído, depois de se lhe retirar o sumo; buruso, burusso (Houaiss); mas ainda uma analogia ao meretrício.
E de extrema importância registrar, desse modo, um valor que transcende a densidade artística e traz aos olhos de todo o país uma mancha social, até então, ordinária e impune: a relação entre prostituição de meninas e a fome. Lembrando de que se trata de um livro escrito nos anos 20.
Tudo era vendido pela hora da morte; só a virgindade se mercadejava a preço baixo. Meninas impúberes com os corpinhos conspurcados. Deitavam-se a elas nos fundos das bodegas por um rabo de bacalhau ou um brote duro.
Américo de Almeida usa da significação simbólica do sexo como esteio de profanação para retratar também a existência corrompida, deflorada, dos retirantes dessorados, ocos de fome, cabisbaixos como quem vai contando passos. É curioso notar como, ao contrário da obra de Graciliano, onde a morte é o elemento de catarse, aqui a maculação do corpo feminino inicia uma arrebentação sensorial que se transfunde ao cenário, em sua hiperestesia de vermelho-terreno, vermelho-carne.
A materialização desse efeito está na personagem Soledade, filha de Valentim e irmã de criação de Pirunga, a moça que se destaca no trio de retirantes que busca refúgio nas terras do senhor de engenho Dagoberto Marçau. Além do feitor e de alguns peões, lá também está Lúcio, filho de Dagoberto, em férias da faculdade de Direito.
Soledade logo chama atenção pela “beleza magra”. Há nela a ingenuidade de menina ao mesmo tempo que a noção do fogo que crepita nos homens, arrebatando Lúcio nos encontros, a princípio casuais, mas que, pouco a pouco, tornam-se um espreitamento irresistível.
O estudante, um jovem autocentrado e, ainda assim, incapaz de controlar os próprios desejos, apaixona-se cegamente pela donzela, atestando sua intenção com um pedido de casamento, após um breve tempo fora do engenho. Dagoberto, no entanto, é contra o relacionamento, por considerar a retirante desonrosa para o filho.
Para que foi que eu gastei tantos e quantos? Dinheiro que dava pra levantar a cabeça de muita gente… Pra que foi que o tirei da bagaceira?
Porém Lúcio insiste, e o pai conta-lhe uma desconcertante experiência pessoal que guarda parentesco com o caso. Quando o filho faz-se irredutível, Dagoberto confessa que estuprou Soledade e a tornou sua rapariga, desencadeando uma sucessão de acontecimentos que irá culminar numa tragédia e na maneira de enxergar os atores da trama.
Américo de Almeida não vai a fundo na elaboração da psicologia de seus personagens, tratando-os feito vetores de sensações, um tipo de humano de raso intelecto (salvo Lúcio) cujo modo de se portar está mais ligado ao instinto que à razão. Isso se dá na maneira de abranger o que se vê, o que se cheira, o que se escuta, puxando o leitor para um ambiente no qual horrores se embrenham pelo prosaico rotineiro, tal uma febre delirante que contamina a todos arrebatados pelos dias que se racham no apogeu telúrico. Não há, por exemplo, o choque fremindo o relato de quem conta a história da mulher que devorou uma criança de cinco anos para sarar a fome.
A contrapartida, desse jeito, impregna-se na linguagem estilosa, ferazmente imagética, que ocorre em duplo estágio: lírica e culta, quando está na voz do narrador; e simples e cheia de expressões e símbolos regionais, quando flui pelo timbre de Dagoberto, Valentim, Pirunga etc. Os mitos sertanejos ganham relevo a partir dessa intermitente musicalidade que delineia a vasta geografia e vai diminuindo o tom ao se aproximar da intimidade dos personagens. O vigor da trama, de fato, advém desse léxico copioso, estufado de figuras de linguagem e marcado pela vocação oral, cuja inovação e complexidade deram forma a um indispensável glossário, elaborado pelo próprio autor.
A nova edição ainda é introduzida por um abrangente estudo, assinado pelo crítico Manuel Cavalcanti Proença, que examina com maestria as ambições explícitas e implícitas deste que é reputado o romance que abriu a nova fase literária do Brasil. Um clássico sobre o êxodo e a fome.
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Livro: A bagaceira
Editora: José Olympio
Avaliação: Excelente
Muito bom apontamento sobre Américo de Almeida. Realmente ficou marcado o Vidas secas, do Graciliano. Décadas depois, lembrei-me desses romances ao ler Outros cantos, de Maria Valéria Resende. Livros que mostram esse vasto Brasil, com tão vastas disparidades de todo tipo.
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