A loucura do louco judeu

O escritor Jacques Fux não se intimida em emprestar sua voz a narradores metidos em situações comprometedoras. Brochadas, lançado no ano passado, é uma longa reflexão de caráter autorreferencial sobre o ocaso masculino, intensificada por doses equivalentes de tragédia e de humor. Seu novo romance também é construído em intermediações desse binômio, mas agora de maneira que um elemento faceie o outro. A comicidade advém de uma tentativa de atenuar/cotejar o trágico, onde se fixa a questão central do enredo: investigar se, dentre todos os povos, a loucura se manifesta com maior potencialidade entre os judeus.

Meshugá (da língua iídiche: o judeu louco) o faz através de mitos, crenças, teorias comportamentais e científicas brotadas na carapaça da História, na qual o tema da loucura se equilibra numa superfície deslizante entre o sofrimento profundo e o riso biliar. Para os não familiarizados com a literatura de Fux, o autor mineiro, que venceu o Prêmio São Paulo em 2013, incorpora fatos do mundo externo à sua ficção, construindo um universo particular que reflete a si na inflexão de um duplo. Neste caso, um condutor narrativo que, tal um ator camaleônico (alguém “que tenta constantemente ser outro personagem”, a exemplo do protagonista do filme Zelig), busca compensar seu esboroamento mental no exercício de reconstituição de minibiografias de figuras públicas. O livro, dessa forma, estrutura-se a partir de uma introdução que se filia a um epílogo, compondo um círculo completo, cujo miolo é preenchido por esses perfis imaginados e breves artigos que trazem a lume informações que propalam a exclusividade da loucura judaica.

Toda história, mesmo as universalmente conhecidas, são compostas de vazios que competem à intimidade. O autor preenche esses vazios com a invenção, sabotando a realidade no que essa guarda de secreto. Assim, expor o caso/união entre Woody Allen e a filha adotiva de sua esposa não basta. Toda circunstância é recriada em detalhes, da descoberta da foto perturbadora por Mia Farrow até o primeiro intercurso sexual entre o cineasta e a jovem. Fantasiando a vida desse triângulo amoroso, o narrador reforma a psicologia dos envolvidos, escrevendo momentos em que impera a voz da consciência. A subjetividade toma as rédeas da trama.

Muito antes de fotografá-la pela primeira vez nua, ele evoca seu passado. O cinema sempre se misturou com sua própria vida. E sempre foi a sua razão de viver. A verdade é que ele nunca soube se era, ou se é, um personagem, uma pessoa ou uma cena. Realidade e ficção se entrelaçam sempre em sua mente. Ele a despe excitado, registra para sempre sua beleza, e a fode como um deus grego. Ele se sente mais vivo e mais artista do que nunca.

Ainda que convoque o efeito Zelig (do longa dirigido e protagonizado por Allen), Fux nunca o faz como um desvio de defesa. Ao firmar um contraponto entre genialidade e perversão, o único propósito é focalizar a ascendência da loucura. O que, todavia, não livra o leitor de sentir repulsa pelo comportamento do cineasta; e até mesmo deflagrar uma nova visão sobre sua obra. Ocorre que isso é problema do leitor. A degeneração de Allen é tão incidental quanto a desgraça da filósofa Sarah Kofman.

De todas as biografias, essa é a que ponteia a tragédia. A menina judia que, ao contrário de seus pais, conseguiu escapar do Holocausto, sendo criada por uma mãe adotiva católica, antissemita, que lhe dizia que “seu povo e seu corpo eram sujos, poluídos, desprezíveis”. Vive nesse sumário de humilhações, até a Shoá chegar ao fim, e descobrir que sua mãe biológica segue viva. Inicia-se, então, uma batalha judicial pela guarda da menina, vencida pela mãe adotiva. Contudo, uma nova reviravolta irá trazer consequências esmagadoras para sua sanidade, que fará da memória adulta ao mesmo tempo o cadafalso e o nó da corda em torno do pescoço de Kofman.

A família que eclode do ovo da serpente é também determinante para o destino nefasto do filósofo austríaco Otto Weininger. Judeu e homossexual, ele transferiu para a verve de seus problemas filosóficos a incerteza da culpa pelos abusos sexuais que sofreu do pai. Colega de Freud, dentre outros médicos e pesquisadores, sonhava em “colocar a psicologia no terreno supremo da arte filosófica”. Mas não consegue se libertar da condenação da infância, do sofrimento. Escreveu Sexo e caráter, seu “abominável e precioso trabalho”, no qual reflete seu prazer pela sodomia; a repulsa por si, “pelos seus cheiros, pelo odor do falo do pai”; o ódio pelas mulheres, representado no ódio pela mãe. Weininger “era um grande gênio, e também um louco”. E, quando a demência predomina, “o suicídio lhe parece doce e saboroso”.

O homem está sozinho no mundo, vivendo em um terrível e eterno isolamento. Não há objeto algum além dele; ele vive para nada; ele está muito longe de ser o escravo de seus desejos, de suas habilidades, de suas necessidades; ele está muito acima de ética social; ele está sozinho. Assim, ele se torna um e todos.

A loucura de Weininger depende de culpados. E, de tantos candidatos em sua vida, o filósofo acolhe a ideia da vilania de seu povo. A ironia autodepreciativa é notoriamente a marca do humor judeu, e, outra vez cotejando a tragédia, Fux seleciona histórias em que ganham expressão o auto-ódio. Do desencantado enxadrista Bobby Fischer, que, anunciando guerra aos Estados Unidos, focaliza sua raiva no povo judeu (Esses bastardos sujos. Você sabe que eles têm tentado dominar o mundo. Você sabe que eles inventaram a história do Holocausto. Nunca houve nada disso), o antissemitismo atinge seu nível mais brutal e desconcertante na biografia de Daniel Burros, judeu que se tornou um dos grandes “intelectuais” da Klu Klux Klan. Após ser abandonado por um rabino a quem enxergava com admiração e aprendizado, Burros direciona seu sentimento de traição aos judeus que, acredita, deterem de um complô para dominar o mundo. Passa a se devotar aos ideias de Hitler, daí se filia ao Partido Nazista. Ali defende “que o homem precisa matar para avançar”, e que “o judeu seria o maior adversário da evolução humana”. Tempos depois, vai a uma reunião da Klu Klux Klan, e se dá conta de que encontrou seu lugar no mundo. Além de propagar o ódio como poucos, Burros se destaca pela inteligência. Ganha um título honroso por isso. Está feliz, odiaria feliz, até um repórter do The New York Times cavoucar o seu passado. Um filho da puta de um repórter do Times investigou minha vida e descobriu algo terrível.

Na versão de Fux, o fim de Burros ganha as páginas de um outro jornal, o antissemita The Storm Trooper, que, a respeito de sua morte, ironicamente redige um estudo sobre a insanidade judaica: Apesar dos judeus, como grupo, serem parte de uma grande família branca, eles são um povo marginal com uma afiliação distinta e uma enfermidade mental que os afastam da família branca. Os judeus são atormentados por sintomas de paranoia: ilusões de grandeza, delírios de perseguição.

Teorias e loucuras brilhantes

Traçar características ultrajantes dos judeus, todavia, não é exclusivo da KKK. Nos breves artigos que intercalam as minibiografias, o autor mineiro resgata teorias, pesquisas e ensaios científicos que garantem a insanidade judaica por meio de argumentos que vão do preconceito doentio ao inacreditável ridículo. A História, por muitas vezes, encarrega-se de propagar o som que ecoa do absurdo. A pecha de um povo de sujo e tarado, por exemplo, data o período renascentista. Nos anos 1800, tratados antropológicos descreviam os judeus como “pessoas extremamente sexualizadas e depravadas, realizando constantemente práticas pecaminosas e supostamente insolentes em relação ao sexo”. E advertiam: A população em geral devia se proteger e se resguardar do convívio com esse mal.

Com a chegada da modernidade, busca-se comprovar a estreita ligação entre os judeus, a loucura e a ganância. Por conta dessa última, inclusive, criou-se a figura do povo dominado pelo desejo doentio pelo lucro, pela moeda, pela sovina. Voltando ao campo da sexualidade, um estudo assinado pelo inglês Houston Chamberlain (1855-1927), decretava que os judeus eram descendentes do incesto e das prostitutas; “atrasados, inferiores, decadentes, pedófilos”. Fux lança mão desses desatinos astronômicos para, de maneira astuta, mostrar como os grupos perseguidos acabam fazendo uso do humor para se autodepreciar , tornando a situação inferiorizada ainda mais ridícula e miserável. É o tal “humor do sorriso entre lágrimas”, como denominou Freud. Este, aliás, que tem um participação bizarra, junto ao otorrinolaringologia alemão Whilhem Fliess. Se já não bastassem as neuroses, ambos quiseram provar um relação entre as vias nasais e a genitália, por conta de um sangramento que foi chamado de “menstruação masculina”.

Falando em genitália, toda frequentação de hipersexualidade (e um pouco também de humor) leva, de fato, ao perfil mais espirituoso de todos. Ron Jeremy, o judeu feio, baixinho, gordo e cabeludo, que se tornou um ícone dos filmes adultos. “Eu comeria até Hitler, se ele fosse uma gostosa”. Nascido em Nova Iorque, levava uma vida normal, entre o trabalho de professor de crianças especiais e o de dublê de ator, até uma foto tirada por uma namorada mostrar ao mundo seu verdadeiro dote. Ronnie, que pau imenso! Oh, my God! Como você se sente? O que isso representa para você?” “Ora, entrei dezoito vezes na fila do pau, respondia ironicamente.

Fux maneja, nesse capítulo em especial, todas as nuances de seu texto compósito, atraindo um soma de referências (de Shakespeare a Philip Roth) que servem para dimensionar o aspecto inusitado da narrativa. A insanidade, enfim, é tudo aquilo que joga contra a trivialidade. Seja um ator pornô que nunca brocha, um gênio do cinema que tem um caso com a filha adotiva de sua esposa, um enxadrista que troca o título de melhor do mundo por um amor, um judeu que idolatra os criadores de Auschwitz.

Na parte final, todas as biografias (e, obviamente, seus biografados) se dissolvem no fluxo de uma história mental que, se deslocada para um palco dramático, não descamba para a ladainha, sendo coerente com tudo o que se montou até ali, ainda que se trate de um livro sobre a incoerência. E para o que se escreve? O narrador, para se descobrir na fronteira entre a genialidade e a loucura; o autor, para caminhar sobre esse terreno movediço entre o humor e a tragédia. Em contraste com a suposta função libertadora das piadas, o prazer humorístico “salva” o sentimento escondido porque a realidade da situação é muito dolorosa.

De volta a Ron Jeremy, uma de suas virtudes é ter o controle absoluto sobre o seu corpo, segurando a gozada até o momento exato. Como ele consegue? Você tem que pensar em outras coisas para não terminar a cena antes da hora. Eu, por exemplo, penso na minha avó morta, na guerra do Vietnã, no Holocausto.

Mais tragicômico, impossível.

***

Livro: Meshugá

Editora: José Olympio

Avaliação: Muito bom

7 comentários sobre “A loucura do louco judeu

      1. My memories, or rather nitsemargh, of this tornado are that I was 12, living on 99th St. and my father, John Mobley, was killed in this tornado. It was a horrible time for our family and every time I hear warnings I think of that day.

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