Para fugir dos vivos, primeiro romance da mineira Eltânia André, tem início com um pedido de retorno. O narrador recebe um telefonema noticiando a instabilidade física e mental da mãe idosa, com quem quase nunca se relaciona. O irmão mais novo é responsável pela assistência, porém está numa viagem a trabalho. Cabe a ele, então, regressar à cidade onde nasceu e confrontar os fantasmas da infância.
De São Paulo ao interior de Minas Gerais, a incursão pela memória traz à tona a origem das cicatrizes das relações familiares. O pai coveiro, aplicado no sustento e na educação moral dos filhos; a mãe insensível, que transita entre a opressão e o desmazelo.
Superpondo presente e passado, o homem se reencontra com o menino que foi engraxate e depois ajudante numa barbearia, que presenciou a frustração do irmão por não se tornar jogador de futebol. Ele mesmo sempre acalentou o desejo de ser escritor e, seduzido pela poesia, saiu de casa na adolescência, escapando da cidade pequena e sufocante, negando a autoridade silenciosa dos pais.
“A literatura é, para mim, uma forma de resistência”, alega.
Eltânia aposta num exercício de construção psicológica, no qual os medos, as culpas e as tristezas despertam inevitável simpatia pelas motivações e pelas escolhas do narrador. Então a trama sofre um blecaute e se abre para o “Livro do Miguel”, agora conduzida pela voz do irmão mais novo.
Amargo por conta do rumo prático que tomou sua vida, o gerente de banco oferece um ponto de vista distinto sobre o passado da sua família, desconstruindo todo o relato que compõe a primeira parte. Revela-se o motivo da frieza da mãe, a conduta agressiva do pai e, sobretudo, o comportamento leviano do irmão, por quem conserva o ressentimento daqueles que são abandonados ao próprio fardo.
Para fugir dos vivos parece gravitar num movimento de rotação. Um enredo que, à medida que se completa, vai iluminando partes antes ocultas, ampliando a noção do todo.
Com isso, temos dois irmãos que se estranham, mas são produtos de níveis semelhantes de decepção; duas histórias que parecem individuais, mas são a mesma. Um trabalho impecável de ficção que, desde já, garante-se como uma das melhores leituras deste ano.
***
Livro: Para fugir dos vivos
Editora: Patuá
Avaliação: Excelente